SINTOMA DESVELADO
Por: Vera Alves de Oliveira
CRP 06/78641
Psicóloga/Psicanalista
Articular algo sob a ótica lacaniana faz-me sentir diante de um desafio que, de antemão, posso supor que não será uma experiência exitosa no sentido da exatidão dos conceitos, pelo ainda recente e pouco contato com essa teoria. No entanto, o de mais valia desse fazer para mim, será eu tomar ciência da minha posição, nesse caminhar ainda em seus primeiros passos, através do olhar do Outro (professor), que já se encontra bem mais à frente. Suponho que será um discurso analítico, de exposição de pensamentos flutuantes, algumas reflexões e associações, com discreta elaboração teórica. Uma fala aberta, que tem um começo e que absolutamente, nada sei do seu final, ainda. Isso me faz pensar na questão dos significantes, que vão se resignificando, resignificando...
Sinto-me como se estivesse matriculada num curso de mergulho, sem saber nadar, sentada numa pedra na beira do mar, sentindo o movimento das ondas que vão e vêm, e eu ali, batendo os pés na água rasa. É a partir desse lugar imaginário, metafórico, que vou me permitir falar alguma coisa do apreendido. No entanto, posso desconfiar que vou dar minhas escorregadelas, e que mesmo sem eu permitir, coisas virão de outros lugares, escapando por outras vias. Lacan introduz o conceito do Simbólico, com a proposta de o inconsciente ser estruturado como linguagem. Se me disponho a falar...
Neste momento, em que tento articular algo que faça sentido com a teoria lacaniana (para mim, ainda tão complexa), me defronto com a angústia pela falta de conhecimento, que em mim é consciente e produz mal-estar. Identifico minha demanda como a falta. Lacan diz com seu matema: S (A barrado), o sujeito percebe a falta no outro e assim a sua própria. Suponho que estar desempenhando esta tarefa, sob as condições já descritas, vou usar de algum mecanismo de defesa, que me alivie e a falta vai para o Outro. (Posso reconhecer que, agora, imaginariamente não mais na beira da praia batendo os pés, e sim, recebendo o chacoalhar das ondas acima do umbigo, vou tentando nadar, me aventurando a iniciar com algumas braçadas).
Uma das possíveis vias de saída da frustração que o sujeito encontra é a sublimação através da arte. Algumas vezes, expresso-me por essa via, através da qual talvez possa realizar meu desejo de forma sublimada. Para Freud, seriam satisfações substitutivas. Lacan pensou a obra de arte “como objeto causa do desejo e por isso entendida como organizada em torno de um vazio”.
Há algum tempo, tenho como um dos temas mais constantes no meu trabalho pictórico a “Mãe-Coruja” (representação que tem agradado à algumas mulheres, que me pedem para serem representadas sob essa simbologia). E assim, vão se mostrando várias “Mães-Corujas” no seu universo familiar, com seus filhos, mais próximos ou mais distantes, conforme o lugar de cada um no grupo, revelando-se os laços familiares ou os nós... Porque esta escolha? Posso pensar que não seja uma escolha consciente e talvez uma captura pelas corujas, através da imagem e simbologia, para algumas mulheres – como uma ave enigmática, não apenas pelos olhos grandes, mas, pelo olhar fascinante, pelas penas quase sempre escuras, pelo bico forte, pelo som ou por tantas outras coisas inimagináveis. (“O eu percebe todas as formas imaginárias, sejam sonoras, tácteis ou, sobretudo visuais, em que se reconhece”).¹
¹ J. D. Nasio, O Olhar em Psicanálise
Para aquelas mulheres que se identificam com essa imagem, é possível que a “mãe-coruja” represente ou simbolize (pelo menos por algum tempo) a ilusão da completude – estou aqui com meus bebês – estamos completos – o desejo de não sentir a falta que pode levar à falta do desejo. A família como representante do ideal de pai-mãe-filhos, seria o lugar onde o sujeito (a partir do ideal de eu) se vê amado pelo outro. Posso pensar a família como uma das representações do imaginário, circunscrita, limitada por uma moldura simbólica. Quando o sujeito olha nesse grande espelho, ele vê de si, uma imagem diferente no Outro, a imagem do sujeito dividido na incompletude. Seria isso a determinação do Imaginário sobre o Real? Esse conjunto imagético possibilitaria ao sujeito ver imagens dele, nas quais ele se identificaria ou que não se reconheceria, provocando indignação, surpresa, revolta.
As artes plásticas estando relacionadas às produções do inconsciente, representam muito além do seu significado superficial de imagens planas ou objetos tridimensionais. Para algumas pessoas, corujas são aves bem interessantes; bonitas, nem tanto; expressivas, com aqueles olhos enormes, que enxergam tudo no escuro, persecutórias? talvez... Tenho retratado várias mulheres a partir desse símbolo, a “mãe-coruja” (e posso pensar sobre esse simbolismo como sendo o representante do ideal narcísico de onipotência). Talvez haja aí uma realização fantasmática do desejo, onde a mãe-coruja, seria (na fantasia) aquela que ama incondicionalmente seus filhos, a que acolhe, a que protege, a que alimenta, a que propicia um ambiente facilitador que forneça os cuidados que aquele bebê precisa e que deverão diminuir gradativamente, fazendo o caminho da dependência à autonomia, seria a mãe suficientemente boa (segundo Winnicott). Os significantes se colocam sobre o significado (como no relato do sonho manifesto). “Para Lacan, os símbolos provêm de um jogo único para cada sujeito, sendo particular apenas para aquele inconsciente... não há relações simbólicas universais”, no entanto, as mulheres que me pediram para serem retratadas como “mães-corujas”, (relatavam identificarem-se com esse simbolismo – mãe ideal). Segundo Lacan, o significante é o que representa o sujeito para outro significante. É possível que o sujeito sustente esse lugar quando busca algo para si, outras vezes se coloque no lugar de objeto, dependente do outro. (A partir do significante S2 mãe-coruja-cuidadora, (como hipótese) posso pensar no S1 (recalcado) bebê não cuidado e no S3 mãe-coruja que não cuida ou não protege.
Nunca havia me detido a interpretar uma produção tão repetitiva de “mães-corujas” com seus belos filhos (conscientemente, lindos; inconscientemente, horríveis, frágeis, dependentes). Segundo a fábula de La Fontaine a coruja faz um combinado com o gavião, que tome cuidado para não comer os seus filhotes. O gavião pergunta como reconhecê-los e ela diz que eram os filhotes mais lindos da floresta. O gavião faminto encontra uns filhotes horrendos e os come. A coruja ao não encontrar seus filhotes fica indignada com o gavião, que não cumprira com a promessa de preservar seus filhos. O gavião defende-se, dizendo que não reconheceu os filhotes da coruja pela descrição que ela fizera, pois comera apenas os filhotes mais feios da floresta. (O não distanciamento narcísico da mãe leva a morte dos filhotes...)
Articulando com o pensamento de Lacan, a estrutura pensada mudaria as identificações que tomariam outro lugar, que se remeteria a uma história infantil bem mais longínqua dessa fantasia (um movimento regressivo da mãe na direção de suas próprias experiências como bebê), caminhando do lugar do sujeito (recalcado) para o objeto “a” (objeto causa do desejo). Sair do lugar de “mãe-coruja” para o lugar idealizado de “filhote-da-mãe-coruja”, ... o que se busca no amor é querer ser amado. Está ai o latente desvelado!? O recalcado emerge através do sintoma s(A), revelado imageticamente pelo tema-sintoma – “mãe-coruja”. Em Lacan, a noção de sujeito passa por sujeito barrado, dividido, sujeito do inconsciente de onde surgem partes de um saber que “não era sabido” (recalcado). Quando algumas mulheres colocam seu olhar no quadro e se vêem como mãe-coruja, segundo o pensamento freudiano , isso não é uma visão para o externo, é um olhar pulsional. Násio J. –D., O Olhar em Psicanálise, pg. 91, diz o seguinte:
“O ato de olhar é um ato que não é para fora. [...] Olhar não é de nós para a imagem, o olhar é um circuito interno em nós. É um circuito que não tem objeto externo em que se praticar. Olhar não é olhar para um objeto. Um quadro não é olhado, é visto. Mas, se o quadro me deslumbra, estou num momento de pulsão escópica. Mas essa pulsão não está posta no quadro, não é que se meta no quadro, ela se constrói no quadro. Mas o quadro em si não é o objeto do olhar [...] , o olhar não é o olhar para fora nem o olhar para dentro, é o olhar pulsional inconsciente, cujo sujeito tampouco é o ator; não sou eu que olho. Quando vejo, sou eu que vejo; digamos, sou eu, vejo em mim. Mas, quando olho, não sou eu que olho.”
Entendo que “mãe-coruja”, como tema-sintoma, foi um meio privilegiado do retorno do recalcado. Após a elaboração dessas ideias, minha produção tão repetitiva de “mães-corujas” passaram a ter outro sentido para mim.
Segundo Lacan: o acesso ao Simbólico supera a relação imaginária ao sair dela. O Simbólico constitui o sujeito e o inconsciente. Para escrever este texto, tentei articular alguns conceitos lacanianos, porém, sem aprofundamento, o que revela o ponto que me encontro neste laborioso e longo aprendizado, ao mesmo tempo que, por esta via, um pouco de algo velado, desvelou-se ao ser olhado.
Dez. 2010
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